sábado, maio 28, 2005

Trezentos cegos

Esse é o início do meu caminhar.
Daqui pra frente, cada passo meu terá uma razão precisa, uma motivação terrível que permanecerá em segredo até 3 dias depois do dia da minha morte - em breve. Em baixo da cama do quarto há uma caixa. Velha que só. Seguramente protegida pela repugnância do papelão. Dentro, um molho de chaves. Vocês estão convidados a caminhar comigo. Talvez se perguntem: que certeza é essa que eu tenho de confiar em desconhecidos - em gente anônima - em gente que não vejo, não sinto, não sou íntimo e nem posso ou quero ser - para revelar de cara tanta coisa íntima e - como vão ver - vergonhosa? Tem a ver com solidão.

- Se vai sair te protege.
Dominando minha decência, estou cada vez mais próximo do Fim. Ainda ontem pensei nessas coisas e cheguei à minha última e grandiosa conclusão: por onde passarão meus primeiros passos não passarão o de mais ninguém. Na noite sentida em tudo mais à minha volta - o estímulo perfeito para quem planeja tanto e tanto - reduzi a importância do sono e me vi... na cama... deitado de frente para o teto. Pela primeira vez eu vi a cara da minha decência... Estampada no alto de uma nuvenzinha está a reprodução velha e carcomida de seu rosto. Tá ali. Digo, estava. Agora, olhando pra baixo e fitando o mar eu revivo isso.

- Tá bem, querida.
Eu sempre falo baixo. E sempre falo mais baixo diante dela. Vejam como eu ainda sou vítima de 38 anos de compostura filial. Resignação suficientes para mais que o dobro de uma vida... E um corpo enrijecido de medo. Fito a boca materna que se abre como minha caixa de papel conrugado. Veja. Vai revelar segredos. Eu os prefiro mal escondidos no chão do meu quarto sob a cama junto com o pó. Minha mãe escancara sua miserável caverna de onde vejo carnes babadas e sem dentes. Quero ir para onde tem ar, tem calor, tem gente, espaço, movimento, presente e futuro, mar... tomara que eu vá mais além. A existência toda está cá fora. O dia todo à minha espera - me conforto com essa idéia - mas não me tranquilizo. Hoje não é dia de tranquilidades - mas de tranquilizantes - ainda não me sinto forte. Desculpem se misturo os tempos dos verbos. Nunca sei quando é quando.

-Peraí. Antes isso.
"Abra a boca e fecha os olhos" - brincavámos eu e minhas primas. Gosto de que? Amora, abacate, outra boca, morango, outra boca. Tem gosto de papelão conrugado. Áspero e cruel. Meu avô teve mais sorte porque agora sou eu e não ele quem se encontra dentro daquela boca. Ele ainda teria a lembrança de uma cavidade mais nova. Eu não. Dentro não vejo pistas do que foi esta gruta. É frio aqui. Dentro dela. Minha língua passa por gengivas duras alisando montes onde moraram dentes e hoje são cumes carecas de uma terra muito úmida e infeliz. Futuramente será seca e enegrecida.
Sugar é olhar. Olhar é furar meus olhos diante do vale de agulhas que apontam para mim saindo da pele suja. Eis a imensa superfície deste planeta, a cara de minha mãe. A velha bruta guarda tanta força em seus ossos que sinto esclerose nos meus. Ossos que comprimem e me puxam para dentro dessa mandíbula moquinal. Ouço ou imagino, não sei, um ranger que me enche de pânico e me dá uma vontade de gritar e chorar ao mesmo tempo. Nada mais que isso em crescente intensidade. Produzo em meu socorro uma imagem. É Deus - como sempre. E sempre Deus é uma adolescente comprida que inicialmente sorri e depois me olha com pena. Eu não quero pena e engulo meu terror. Engulo também minha decência. Me subverto. Beijo minha mãe. Lingua sobre língua. A dela escorrendo sobre a minha - esta que ainda é jovem e macia, percebo agora, resistente. Reajo porque respiro. Respiro dentro da vala fria enterrado pelo húmus e raízes, um defunto vivo que deixa os vermes brincarem em minha garganta.
Eis o resultado. O primeiro passo que destrona. Minha mãe se afasta. Um planeta que se afasta de sua trajetória mortal.

Cinco dias depois acordo num leito. Só.
"Minha Pátria Mãe Gentil" é o que ouço na rádio.
Minha Pátria Mãe Gentil acorda antes de mim e se debruça toda sob um céu cor de leite... leite sujo. Jogaram cinzas nele e mecheram com uma colher.
As ruas as ruas as ruas...
O hábito de repetir três vezes as palavras que mais gosto eu peguei de meu pai, ou, ao menos do pai que criei. Não o conheci. Não o tenho na memória. Só me lembro de mãos. Me lembro de vozes e olhares. Me lembro de sorrisos e dentes que me ofendem o humor de tão carbônicos. Não podem ser de meu pai. Não quero que sejam. Então meu pai é feito de lembranças arranjadas por mim, manias que tenho mas que digo que não tenho e que existem porque eu sei que existe um meu pai. Em algum lugar existe um meu pai. Agradável e terno. Cheio de manias maravilhosas. Dono de histórias boas e uma memória fantástica para o fantástico. Meu pai.
Diante da antisocial janela puxo o ar. Sem satisfação e nem a menor pretensão de plenitude neste gesto, olho aquillo tudo que é o mundo e cato beleza em um verde no asfalto. Os pássaros que ouço estão soltos no céu ou estão em minha mente? Bom, não sou tão incrédulo de dizer que isso não me traz um certo conforto. Uma nódoa de alegria. Digo para aquilo tudo que é o mundo e para os pássaros que me trazem conforto: "para uma manhã da minha vida esta até que está uma bela manhã".
Estou esfuziante - para quem é desânimo.
Estou cantando num musical - para quem odeia breakfasts.
Sabe, eu moro na frente do mar. Desculpem, mar não: baía. É. Mas antes do mar vejo um rio. Rio não: um braço de asfalto-rio onde trafegam carros à velocidade de 85 km motoristas anônimos regras de trânsito marcadas por acidentes e derrapagens na pista. Toda essa racionalidade erguida por pilares. Porque pilares erguem o racional. A razão é feita de vigas.
Nos afluentes do asfalto vejo placas e lápides de todos os operários que morreram na intenção de serem esquecidos. Na construção, no parto. Morreram no parto. Bebês adultos viraram fetos encolhidos que morriam todo dia na volta noturna para suas casas. Lá? Lá eram recebidos por nada e ninguém. Tanto a criança quanto a mulher dormiam e o macarrão frio era o que o esperava no forno. Na possibilidade disso, os operário fizeram sua escolha ainda que quem tivesse feito a escolha fosse a Vida. Saltaram do sólido, flutuaram no ar, se esborracharam no falso líquido, o mesmo mar que avisto agora. Mar não, desculpem: baía. Meu pai, tenho certeza, não deve ter sido operário. Ou ao menos, um desses que desiste e falha. Ele não morreu. Está por aí. Pai pai pai