domingo, janeiro 30, 2005

Tudo bem

E sendo assim sentia-se muito adolescente e muito velho.
"Não se faz uma surpresa pedindo autorização ao foco da surpresa."
Assim como, não existe meia-surpresa e intenção não é ato.
A história que poderia ser ficou trancada na cabeça e virou mais uma manhã de banho quente. Mais uma manhã sem a mão dela onde dói: nas costas, nos braços e no coração. E sem a boca pequena onde sai o chateado ar. Trocou isso por aquilo. Trocou a aventura por um dia quase igual ao de ontem. Ele não se entende. Mais uma vítima da meia-loucura... do meio-ato.
Nariz trancado e tempo chuvoso. Então, diante da bagunça que havia aprontado fez a única coisa que se faz quando se está de muxoxo: pensar. Pensando, pensou deitado. Deitando, dormiu.
Dormindo, assistiu um filme azul. Aquele olho claro em close dominava a cena - devia ser esverdeado, estava azul claro. Viu tudo e cada detalhe. A câmera se afastou de um jeito engraçado e ele não percebeu mas via agora o rosto do olho que era o dela. Não era desconcertante e dava muito prazer assistir aquela cena. Nada mais acontecia. Nem precisava. Era o rosto dela e o contorno dos ombros. Havia ainda uma conchinha fechada no meio da claridade. Uma concha estreita e que devia ser avermelhada. Imagine uma concha de perfil. Sem as reentrâncias que são de costume. Na verdade, muito lisa. Imagine que, sem impedimento e de forma lenta e gradual, suas extremidades deslizam. As partes côncavas se alargam na reação à ação de um sorriso. As extremidades desta concha buscam o céu. Os olhos devem ser o céu pois também reagem assumindo mais brilho.
O sorriso abre a concha e insinua as pedrinhas brancas que têm guardadas. Presta atenção. Cuida o colar de jóias que se oferece nesse momento azul. Entra na cena outro ator... O novo personagem se junta a ela e agora tudo se revela. A câmera está no mesmo lugar mas os olhos claros já estão em outro lugar. Ele chegou.
Um som de madrugada interrompe a projeção. Apenas uma pausa. Abre o olho e só vê escuridão. Prefere ver o filme.
Encostado, de costas com as costas do seu tio militar. É um lugar campestre. Esse momento não lhe é estranho. Já aconteceu. Já aconteceu? O sonho agora não é mais azul e não parece uma projeção. Estão todos preguiçosos no que parece uma pós-festa familiar. Fim-de-churrasco num fim-de-domingo. Seu pai aparece e lhe oferece um presente. Tome, leva essa bíblia - diz o pai, sorrindo como quem apronta. E lhe entrega um livro de bolso pra se admirar na palma da mão. É um presente - completa o tio. De casamento - prossegue, rindo. Diante da surpresa do garoto, ele diz, matreiro como sempre: "Eu já sei de tudo, meu filho." Ao folhear, lê um livro sem palavras: páginas em papel de embrulho se alternam com outras páginas claras e brilhosas . A bíblia dada é toda assim: um mini-compêndio de páginas ásperas e páginas macias, páginas pardas e páginas de prata. A cada cinco páginas de um, uma de outro. A capa da bíblia é uma trança de barbantes de juta e um laço vermelho amarra tudo e faz um nó natalino. Será natal nesse sonho?

Acorda.
Sim. Ainda é a sua casa... De hoje.
Levanta.
Sim. Ainda, a mesma bagunça de trabalho e da quase-viagem quase-surpresa de ontem. Está comprovado que o tempo é linear e que atos deixam vestígios.
Olha o computador. Espere. Houve um ato sem vestígio aparente. As passagens estão lá. Num lugar seguro. Guardadas como um fundo... O certo e garantido fundo...
Para voltar pra sua casa. De amanhã.

Tudo bem.



quarta-feira, janeiro 12, 2005

Um mantra praquê

- Essa menina come creme demais.
- Se empanturra de gordura.
Se lá fora as nuvens se chocavam lentamente, lá dentro não saiam do lugar. Fora já foram. Passaram e ninguém viu. Dentro, pararam e bocejaram. Então olha o senhor de volta à leitura sofrida do seu jornal com pensamentos densos e carregados. Algo entre a inevitabilidade do não-ser e a ânsia mórbida de tomar sua própria pressão. A senhora torcia as mãos e ouvia os estalares das juntas pensando será já hora do almoço? A criança comia creme doce mentecapto com o olhar fixo no objeto da sua frágil domesticidade infanto-juvenil. A tela que espirrava alegria pronta e quentinha... rumo ao sepulcro estarrecido de ver que o tempo naquela casa já passara e era tarde demais. O mesmo tempo que cerzia uma mortalha ornada de nadas por onde todos passeavam sobre... ahn, não, boiavam... boiavam sobre a mesma mesmice sem fim daquele velho carpete. Taco ou formipiso também valem. A escolher.
- Vai escovar esse dente menina.
Um dente menina. Gorducho e furada. Tortinho e tristonha. Entre amarelado e turva. Uma dente bondoso e solitária. Caído a espera da queda. Sem ser de leite.
A essa ordem vencida veio uma desobediência sem graça. À intensidade das horas, momentos e alegrias perdidas veio a profundidade de assumidos fracassos. Pra quê? Pra quê? Eles todos pareciam se perpetuar no entoar da giratória pergunta.
Da também giratória cadeira, o menino se permitiu lucidez. Um moleque assistindo todos os modelos descartáveis de comportamento desfilando à sua frente. Que vontade de quebrar a tela. Mas seu deus de bolso lhe disse para mirar sobre a ira e assim enxergar o além dali. Uma historinha de paz que fosse muito bonita pelo mistério e pelo abraço que oferece.
Na frente da sua história há um cortejo de janelas. Mostruário de vidas paradas que valem algo que elas mesmas não sabem, porque se soubessem não desperdiçavam tanto.
Foi quando um problema de coluna se tornou uma linguagem. Criada por seu corpo para dar recadinhos maus. "Escoliótico, lordoso, cifótico... " Lombroso foi o triste homem que avaliou pelo corpo a dignidade do ser. Não é à toa que seu nome lembra um problema postural.
Problema: a criança que bebe chope. A criança que fuma. A criança que virou coca (as duas). A criança que anuncia. Ainda assim uma criança. Apesar disso, criança. Para calar teu choro dão-te de presente um vício... uma manha. Na falta dele e na presença da sua choromanha lhe dão outro vício - mais atualizado.
Logo ali, à esq. da foto, um senhor lê o jornal. O jornal fornece palavras mais do que notícias. A novela fornece vida mais do que histórias. E as palavras vão morrendo naquela casa. Engolidas com a comida e substituídas por um mantra "praquê".
A reação não é reação. É somente prache.

Então o guri voltou para seu labor sedentário e para o além dali.