quinta-feira, novembro 10, 2005

Errado e certo

Vou te dizer que não escovo os dentes há 6 anos só pra assistir o teu já esperado sorrisinho cínico. Desse modo, você aproveita e mostra que tem tratado bem dos seus.
Não vou sorrir agora pra não quebrar o encanto desse momento... Momento que é parte de um processo. Processo no qual fui me tornando cada vez mais repugnante a partir daquele direto, seco e simples "sai". Ainda não é a hora de mostrar o quão pouco daquele "facho cegante" que eu fui, restou. Agora, sem nenhum glamour eu sou a luz justa pra penumbra em que eu vivo e por mais estranho que seja eu sinto que há uma dignidade nisso.
Vamos lá. Isso tudo é uma metáfora. Abandonei meus próprios dentes à uma sorte entre aspas e sem grandes medos por dentro. Quando digo isso, em resumo, digo: fiz porque eu quis. Meu sorriso, que reservo para o justo final de nossa palestra é a sentença de que me condenei à dono do próprio destino. Digno ainda que banguela, escroto ainda que o mesmo homem doce de sempre. Não se sinta uma santa. Isto não é imolação. Também não virei mendigo. Aliás, me recusei a mendicância. Quis apodrecer a boca, somente a boca. O resto que há em volta - meu corpo - degradei de outros jeitos mais sutis mas também muito eficazes.

Agora sim... Abro a caverna e sorrio.
Isto é uma metáfora.

sábado, setembro 17, 2005

Dr. Medicina (dissertação em 11 atos)

Atores:
Mortimer Só
Dr. Antonio
Dona Terezinha
Homens de macacão
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I Ato

Pode sentar. O que o traz aqui, Sr...?
Só. Mortimer Só.
Certo. O que o traz aqui, Sr. Só?
O Sr. não lembra de mim?
Como?
O Sr. não lembra que estive aqui antes?
Ah, o Sr. já é meu paciente... Quando foi sua última vez? Vou pedir à minha secretária que traga sua ficha e...
Eu estive aqui ontem. O Sr. não lembra, Dr.?
Ontem? Olha, de fato, tive muitos pacientes ontem mas não lembro de ter atendido o Sr.
O Sr. não lembra, Dr.?
Bem, pode ser que eu tenha esquecido não é mesmo? Vou pedir à minha secretária que traga sua fi...
Desista.
Como?
Desista. O Sr. não lembra do ocorrido?
Não. Que ocorrido?
Pois bem, então eu vou aclarar sua memória... Dr.

(escurece o palco)

(reacende o palco. vê-se uma parede sendo empurrada para o centro do palco por homens de macacão, surge assim a divisão entre a sala do medico e a sala de visita. passasse um tempo sem falas onde o médico olha um canto de parede em sua sala enquanto na sala de visita, dona terezinha olha fixamente um canto de parede. os dois olham para a mesma direção: uma paisagem de praia entre os dois cenários. a paisagem fora posta por um dos homens de macacão que empurrava o cenário.)

Dona Terezinha. Venha aqui, por favor.
(olhando para a foto na parede)

Estou indo, Dr. Antonio.
(olhando para a foto na parede enquanto fala pelo interfone)

(dona terezinha se levanta e entra na sala. a outra sala se apaga.)

Sim Dr. Antonio?!
Dona Terezinha, o paciente que acabou de sair daqui...
O Sr. Só?
Sim... Ele me afirmou que esteve aqui ontem para que eu o atendesse e que eu o atendi. A Sra. lembra dele ter vindo aqui ontem, Dona Terezinha?
Não no meu turno, Sr.
Doutor... A Sra. não lembra se viu ou a Sra. não viu o Sr. Só aqui ontem neste escritório, Dona Terezinha?
Perdão, Dr. Não lembro de têr visto aquele Sr. neste escritório durante o meu turno, Dr.
Ok. Ok. Pode ir. Ahn... Dona Terezinha.
Sim?
Procure a ficha do Sr. Só, para mim.
Ahn Dr...
Hm?
A ficha. Está aí com o Sr., Dr Antonio.
Ahn?
O Sr. acabou de atendê-lo. A ficha está com o Sr., Dr. Antonio.
Oh sim. Está. É verdade. A ficha está comigo, Dona Terezinha. Obrigado. Pode ir...
Sim Sr.
Ah! Mais uma coisa...
Sim, Dr. Antonio.
Quem estava cumprindo o outro turno de ontem aqui neste escritório, Dona Terezinha?
O Sr. não lembra, Dr Antonio?
NÃO DONA TEREZINHA. Eu não lembro quem estava aqui no outro turno de ontem neste escritório. A sra poderia me fazer o favor de me lembrar, Dona Terezinha?
Ninguém... Ninguém além do Sr., Dr Antonio.
...
O Sr. não lembra de ter dito que atenderia os telefones enquanto eu ia me consultar com a Dra. Ana... Ontem... No outro escritório?
... Claro, claro... Obrigado... Dona Terezinha... Pode ir...

(médico sozinho na sala; olha para os retratos na parede; olha para o diploma)
Ontem.

(escurece o palco)

(sons de gemidos que viram gritos. gritos de prazer. o palco se reacende com luz mortiça até estabilizar numa luz vermelha. mortimer só fode com dona terezinha. dr antonio atende uma paciente sentado atras de sua mesa. enquanto sobre a mesma mesa a foda vai ficando boa. dr antonio se levanta para auscutar a paciente - que é um boneco - e fica falando coisas de médico até o climax do gozo dos dois lá em cima da mesa. dr antonio não pára de falar coisas de médico. depois do gozo, dr os dois corpos ficam um sobre o outro bem em cima da mesa. os dois vão se desencaixando lentamente com muitos gemidos. vão se levantando. vão se retirando da cena. volta a escuridão.)

Plano. Qual o seu plano? Qual-é-oseu-plano? BradescoSulamericaPetrobrasBanerjBanespaGoldenUnimedUnicred Qual é o seu plano? Qual é o seu plano?
Toma aqui. Esse serve? Esse aqui.
Isso não é plano, amigo. Isso é uma carteira de identidade.
Pois é Pois é Esse é meu plano esse é que é meu plano.
Não. Isso não é plano. Isso não vale nada meu amigo. Isso é uma identidade.
Vale sim. Pelamor vale sim. Olha. Sou eu sou eu eu sou esse aí.
Não. Não e não.
O que é que está acontecendo aqui? Que zona é essa?
Esse sr.
Só. Meu nome é Só.
Ele quer ser atendido. Mas ele não tem plano.
Ué então pague ora. 300 reais 300 reais amigo. Vai passando aí 300 reais a consulta.
Mas eu não tenho isso. Eu não tenho. Eu só tenho doença. Eu só tenho minha doença.
Então vai trocar por dinheiro, porra.
(o medico tira uma arma e aponta para Só. gritaria e confusão. de repente a cena congela. pessoas vestidas d macacão empurram um sofah para o meio do palco. retiram as paredes do lugar. os personagens ficam congelados. mortimer só sai do congelamento e anda ateh o meio do palco onde está o sofá. em cima do sofa várias caixas de remédio com tarja preta. ele olha e tira uma caixa, pega, examina, abre a caixa, tira a bula e lê em voz alta.)

leitura da bula ateh as contraindições.

Se eu tomar isso eu morro. Mas mas se eu não tomar isso... eu morro.

Eu, na cama, com a sociedade avançada

I

Acho que vou dormir.
Não não. Acho que vou levantar.
Tem trabalho, não tem? Ai, minha coluna.
Devo tentar.
Acho que vou tentar... Tentar o quê? Do que eu estava falando? O que eu tentei antes foi deletado. Antes... Não lembro se eu já estava deitado e esqueci ou se deitei agora e não dormi. Não lembro se dormi. Dormir? Tentei. Acho que sim.
Mas agora eu tenho certeza de que não devo levantar. Algo vai acontecer e eu não devo levantar. O Fato entrará deslizando com seus pézinhos aéreos e se, quando o Fato passar pelo quarto, eu me esconder sob as cobertas, ele não me verá e passará para outro apartamento. É isso. Já sei. Eis meu projeto do dia. Decidir quando devo tomar o remédio. Que forma perfeita de solucionar meus problemas. Não tenho sono mas desejo dormir, certo? Tenho que tentar mas não lembro o que... Se eu me concentrar não em tomar ou não aquele remédio mas em quando tomá-lo estarei executando a ação.
Está decidido.
Deitarei novamente.
Mas se deitado eu já estava, me deitarei por dentro. Estou feliz pois agora estou convicto de que executarei uma ação no tempo. Se não posso dormir então que eu me deite. Se eu desejo tentar algo mas, não me lembrando, não sei o que é, devo então me concentrar no quando em vez de no o que. Afinal, eu sei que eu devo tentar. Sei que não há outra escolha além da tentativa. Ou melhor, talvez até exista mas ainda não se sabe qual é. Bem, esta ânsia é certa: tentar.
Desnecessário prosseguir, pode parecer que estou querendo enganar-me. Não, não... Não estou deslocando a fonte do meu desprazer. Que isso fique bem claro. Estou só invertendo tudo. Passarei a ser eu o Fato, deslizando sobre a tentativa, e ela o Eu-eu mesmo, se escondendo sob as cobertas esperando que eu passe por ela que, mesmo sendo tentativa, deita mas não dorme por não ter porque dormir. Agora ficou tudo muito claro. E decidi tudo isso sem sair da cama! Fenomenal. Quando todos os projetos de tentativas ignorarem o 'o que' passando direto para 'o quando' estaremos na sociedade avançada. Tendo 'o quando', o 'o que' pára de importunar. O Quando é o Fato. Sim, quando O Quando chegar eu me preocupo com o O Que. Está feito...
Ei. Espere. Me ocorreu algo.
Será que já não estamos na sociedade avançada?


II

Anita sonhou que estava nua.
No seu sonho nós ríamos muito dela. Duma forma que faria qualquer outra Anita chorar de vergonha. Mas outra coisa ocorreu dentro dela. Enquanto ríamos de nos acabar ela decidia: acordar, deitar ou morrer? Então, se deu conta de que todas as três alternativas eram a mesma. Tomou a faca das mãos da irmã (que ria) mas sabia que não conseguiria se matar. Nem ao menos cortar a própria pele. Fez assim: deitou a faca no chão com o gume voltado para o céu. Deixou-se empurrar pela multidão histérica e assim foi, desenhando um arco até o chão, até sentir uma linha fria de dor penetrar-lhe o peito. Deu certo.
1) A turba parou de rir. Alguém gritou por ajuda.
2) Anita acordou. Anita deitou. Anita morreu.

Chovia em seu sonho.


III

O telefone tocou e tocou e tocou e eu desisti.
Fiquei olhando o piano e pensando e pensando e pensando.
Tornei a ligar. Daí só deu ocupado. Liguei; ocupado. Liguei; ocupado. Liguei; ocupado. Liguei; ocupado.
Mas, meu Deus do Céu, o que está acontecendo? Me inquiri - bem alto para que eu ouvisse bem.
A decisão de aguardar veio do relógio. Afinal, ele estava ali e precisava mostrar serviço. Então tá. Foi aí que notei algo singular: eu estava nervoso. Muito bem, era preciso manter a calma, restabelecer o equilíbrio e projetar os fatos. Respirei fundo mas não percebi que não foi suficiente. Respirei mais fundo. É espantoso a capacidade de guardar ar do pulmão. Utilizamos pouco e fazemos mal-uso de nosso aparelho respiratório. O uso do aparelho respiratório: eis meu tema do dia. Percebi algo. O telefone tocou. Possivelmente havia tocado três vezes antes daquela mas eu estava absorto demais com a respiração para perceber. Atendi e ouvi um sinal, silêncio, sinal... silêncio... sinal... tentei mas não consegui respirar de acordo com o pulsar daquela desistência. Recolocado no gancho, o telefone me parece desarmonioso.
Torno a ligar.

sábado, maio 28, 2005

Trezentos cegos

Esse é o início do meu caminhar.
Daqui pra frente, cada passo meu terá uma razão precisa, uma motivação terrível que permanecerá em segredo até 3 dias depois do dia da minha morte - em breve. Em baixo da cama do quarto há uma caixa. Velha que só. Seguramente protegida pela repugnância do papelão. Dentro, um molho de chaves. Vocês estão convidados a caminhar comigo. Talvez se perguntem: que certeza é essa que eu tenho de confiar em desconhecidos - em gente anônima - em gente que não vejo, não sinto, não sou íntimo e nem posso ou quero ser - para revelar de cara tanta coisa íntima e - como vão ver - vergonhosa? Tem a ver com solidão.

- Se vai sair te protege.
Dominando minha decência, estou cada vez mais próximo do Fim. Ainda ontem pensei nessas coisas e cheguei à minha última e grandiosa conclusão: por onde passarão meus primeiros passos não passarão o de mais ninguém. Na noite sentida em tudo mais à minha volta - o estímulo perfeito para quem planeja tanto e tanto - reduzi a importância do sono e me vi... na cama... deitado de frente para o teto. Pela primeira vez eu vi a cara da minha decência... Estampada no alto de uma nuvenzinha está a reprodução velha e carcomida de seu rosto. Tá ali. Digo, estava. Agora, olhando pra baixo e fitando o mar eu revivo isso.

- Tá bem, querida.
Eu sempre falo baixo. E sempre falo mais baixo diante dela. Vejam como eu ainda sou vítima de 38 anos de compostura filial. Resignação suficientes para mais que o dobro de uma vida... E um corpo enrijecido de medo. Fito a boca materna que se abre como minha caixa de papel conrugado. Veja. Vai revelar segredos. Eu os prefiro mal escondidos no chão do meu quarto sob a cama junto com o pó. Minha mãe escancara sua miserável caverna de onde vejo carnes babadas e sem dentes. Quero ir para onde tem ar, tem calor, tem gente, espaço, movimento, presente e futuro, mar... tomara que eu vá mais além. A existência toda está cá fora. O dia todo à minha espera - me conforto com essa idéia - mas não me tranquilizo. Hoje não é dia de tranquilidades - mas de tranquilizantes - ainda não me sinto forte. Desculpem se misturo os tempos dos verbos. Nunca sei quando é quando.

-Peraí. Antes isso.
"Abra a boca e fecha os olhos" - brincavámos eu e minhas primas. Gosto de que? Amora, abacate, outra boca, morango, outra boca. Tem gosto de papelão conrugado. Áspero e cruel. Meu avô teve mais sorte porque agora sou eu e não ele quem se encontra dentro daquela boca. Ele ainda teria a lembrança de uma cavidade mais nova. Eu não. Dentro não vejo pistas do que foi esta gruta. É frio aqui. Dentro dela. Minha língua passa por gengivas duras alisando montes onde moraram dentes e hoje são cumes carecas de uma terra muito úmida e infeliz. Futuramente será seca e enegrecida.
Sugar é olhar. Olhar é furar meus olhos diante do vale de agulhas que apontam para mim saindo da pele suja. Eis a imensa superfície deste planeta, a cara de minha mãe. A velha bruta guarda tanta força em seus ossos que sinto esclerose nos meus. Ossos que comprimem e me puxam para dentro dessa mandíbula moquinal. Ouço ou imagino, não sei, um ranger que me enche de pânico e me dá uma vontade de gritar e chorar ao mesmo tempo. Nada mais que isso em crescente intensidade. Produzo em meu socorro uma imagem. É Deus - como sempre. E sempre Deus é uma adolescente comprida que inicialmente sorri e depois me olha com pena. Eu não quero pena e engulo meu terror. Engulo também minha decência. Me subverto. Beijo minha mãe. Lingua sobre língua. A dela escorrendo sobre a minha - esta que ainda é jovem e macia, percebo agora, resistente. Reajo porque respiro. Respiro dentro da vala fria enterrado pelo húmus e raízes, um defunto vivo que deixa os vermes brincarem em minha garganta.
Eis o resultado. O primeiro passo que destrona. Minha mãe se afasta. Um planeta que se afasta de sua trajetória mortal.

Cinco dias depois acordo num leito. Só.
"Minha Pátria Mãe Gentil" é o que ouço na rádio.
Minha Pátria Mãe Gentil acorda antes de mim e se debruça toda sob um céu cor de leite... leite sujo. Jogaram cinzas nele e mecheram com uma colher.
As ruas as ruas as ruas...
O hábito de repetir três vezes as palavras que mais gosto eu peguei de meu pai, ou, ao menos do pai que criei. Não o conheci. Não o tenho na memória. Só me lembro de mãos. Me lembro de vozes e olhares. Me lembro de sorrisos e dentes que me ofendem o humor de tão carbônicos. Não podem ser de meu pai. Não quero que sejam. Então meu pai é feito de lembranças arranjadas por mim, manias que tenho mas que digo que não tenho e que existem porque eu sei que existe um meu pai. Em algum lugar existe um meu pai. Agradável e terno. Cheio de manias maravilhosas. Dono de histórias boas e uma memória fantástica para o fantástico. Meu pai.
Diante da antisocial janela puxo o ar. Sem satisfação e nem a menor pretensão de plenitude neste gesto, olho aquillo tudo que é o mundo e cato beleza em um verde no asfalto. Os pássaros que ouço estão soltos no céu ou estão em minha mente? Bom, não sou tão incrédulo de dizer que isso não me traz um certo conforto. Uma nódoa de alegria. Digo para aquilo tudo que é o mundo e para os pássaros que me trazem conforto: "para uma manhã da minha vida esta até que está uma bela manhã".
Estou esfuziante - para quem é desânimo.
Estou cantando num musical - para quem odeia breakfasts.
Sabe, eu moro na frente do mar. Desculpem, mar não: baía. É. Mas antes do mar vejo um rio. Rio não: um braço de asfalto-rio onde trafegam carros à velocidade de 85 km motoristas anônimos regras de trânsito marcadas por acidentes e derrapagens na pista. Toda essa racionalidade erguida por pilares. Porque pilares erguem o racional. A razão é feita de vigas.
Nos afluentes do asfalto vejo placas e lápides de todos os operários que morreram na intenção de serem esquecidos. Na construção, no parto. Morreram no parto. Bebês adultos viraram fetos encolhidos que morriam todo dia na volta noturna para suas casas. Lá? Lá eram recebidos por nada e ninguém. Tanto a criança quanto a mulher dormiam e o macarrão frio era o que o esperava no forno. Na possibilidade disso, os operário fizeram sua escolha ainda que quem tivesse feito a escolha fosse a Vida. Saltaram do sólido, flutuaram no ar, se esborracharam no falso líquido, o mesmo mar que avisto agora. Mar não, desculpem: baía. Meu pai, tenho certeza, não deve ter sido operário. Ou ao menos, um desses que desiste e falha. Ele não morreu. Está por aí. Pai pai pai

terça-feira, abril 26, 2005

A imersão é um código

Algo vem. Um vento que empalidece o campo.
É bom? É ruim? Não sei. Vem. As nuvens pouco resistem. Buscam formas, se monturando sem parar - eu paro - eu espero: o dia todo pra ver manhã em tardinha que traz o sussurro de algo que vem e pra ter a certeza que esta não vai ser a mesma noite de ontem.
Sei que meus pés estam lá mas não os sinto. Na mesma bota. No mesmo chão que os engole. Fincados como estacas, nem vale o esforço de usar as minhas pernas. Correr é ficar. Fico e corro na minha insistência de ser um espantalho do meu medo. Lá no alto, camadas e camadas de fantasmas cinzentos esmagam meus olhos. Se fossem bólidos atravessariam um milhão desses cinzas até emergirem no azul. Eu teria alívio de segundos pra respirar, admirar-me com a paz, sentir-me feliz de tão só até ter meus olhos tragados pela Terra novamente. Caindo com a chuva.
Daqui, camadas e camadas de vazios também se aglomeram. O frio vem, me atravessa e parte como se eu fosse nu. No entanto, sou roupa. Roupa estendida no varal que não seca nunca. Quero ficar. Não quero ir. Quero esperar. Que eu seque no frio. Que seja assim. Bom ou ruim, o vento passa. Ou nos leva, ou nos atravessa qual fossemos roupas nuas. De uma forma ou de outra, ele vai. Deixando a mim, a ela e aos fantasmas do céu em paz, pq não? Que o vento passe. Sem fuga.
Que empalideça o campo. Eu sei que depois do vento vem o sol. Que nos seque os olhos pra nos vermos melhor. Pra vermos quem seremos depois. Depois: depois e depois e depois.

quarta-feira, abril 20, 2005

Prece prece sólido sólido chão chão

Peço que me acorde de mais essa noite de solidão.
Peço que me acorde de mais essa noite de solidão.
Estou numa rua. Estou onde não estou.
Me sinto muito quente me sento sobre o chão frio
me calo me repito.
Tua pele me repele. Então não mais me aproximo.
Não me escuto então eu grito.
Não me escuta enquanto grito.
Me recupero não sei como mas só sei quando não respiro.

Peço que me acorde mas não te digo não consigo.
Peço que me mova pois já não me movo sozinho.
Me desloco no tempo para o tempo onde não me avalio.
Percorro minha extensão me descubro dentro de um nicho.
Me isolo em meio a água, em meio a água eu me ilho.
Fujo de mim mesmo e dou de cara dou de cara
dou de cara com um rio
a extensão é de um mar por isso a outra margem não avizinho

Pois
Sou ilha no meio dum mar que não passa de um rio
Peço que me abrace tá fazendo muito frio.
Peço que me acorde não quero ficar sólido não.
Peço que me acorde não quero ficar só no chão.
Peço que se aproxime e não me deixe no porão.

segunda-feira, abril 18, 2005

Marx segundo Freud

Acabaram os copos de plástico.
Alguém tem que descer pra comprar.
Bom, isso foi o que eu entendi na hora. Daí cheguei e fui cuidar a minha mesa. Prefiro ficar longe pro caso do problema vir pro meu lado. Ai. As canetas. Não tem uma caneta sequer na minha mesa. Isso acaba comigo é como se deixasse de ser minha. Mas tem o escondido. O escondido é o santuário onde meus reservados ficam a salvo da horda. Tem uma Lammy e duas Bics. Obviamente optei pela coisa mais barata. Só tinha vermelha e preta. Peguei as duas pra deixar a vermelha (a que uso menos) na Vala e a preta no segundo estagio do escondido. O segundo estágio do escondido é o segundo círculo do santuário onde meus pertences importantes porém mais dispensáveis podem ficar. Um lugar menos protegido que o santuário mas ainda assim de acesso mais trabalhoso que A Vala. A Vala? Purgatório dos objetos. O local mais à vista das águias onde ofereço em sacrifício meus bens de menor valor à essas filhas da puta. Elas vêm de razante sobre minha mesa para sequestrar qualquer coisa em emprestado.
A horda. Cavaleiros do hades. Seres desprezíveis dispostos a tudo para disseminar o caos pilhando em pleno dia a propriedade alheia. Porcos com asas. Se deliciam com as iguarias da Vala e as carregam pros seus ninhos sujos. Onde tudo se perde. Onde a propriedade deixa de ser.
O monturo de arquivos da pasta A está bem maior que o da pasta B. Mal sinal. Que vontade de clicar e arrastar tudo pro limbo. Mas não dá. Dentro da rede todos os passos são monitorados por Fred, o Musgo. Convém ter medo do seu ícone - a cobra preta de chifres vermelhos no canto da tela.
Não entendi bem e peço para repetir. A vaca da mesa 1 me intima para a vaquinha dos copos de plástico. Como deixaram acabar? - me pergunto. E a reserva? Ra, não existe reserva. Olho pra vaca e... não queria ter hesitado, não devia... Será que ela percebeu? Mas também, que importa? Quando lhe dou o dinheiro, ela corre para a horda sem dizer nem "tchau seu otário". Discute-se muito pra terminar com cerveja. Sei bem pra onde vai esse mutirão. O assunto me dá sede e me faz lembrar do meu segredo: eu tenho um santuário. Inatingível até para o Musgo. Nos períodos de escassez, eu sempre sobrevivo. Morrem os lagartos ficam os ratos. Morre a civilização, sobrevivem as baratas. Que fique claro, não sou rato nem barata mas sou sobrevivente. Num lugar onde prevalece a rapinagem, o almoxarifado é só um local para a felação após o almoço. Aqui eu sou reserva moral e é isso que me mantém lúcido em quatro meses sem ver a cor do salário.
Deslizando a gaveta escondida surge um paraíso particular. Entre o kit de primeiros socorros, a garrafinha d água, durex, cola, lápis, lammy e outras coisas... um copo de plástico. Apenas um. Rígido. Não um desses frágeis descartáveis de plástico branco mundano desprezível. É o meu.

Heróis

Se olhasse para trás teria visto sua vida.
Se olhasse para trás mas não olhou. Orgulhoso, preferiu seguir em frente se achando muito certo de seus atos. Covarde, atinou que nunca chorou antes como naquela noite. O lado oculto lhe disse coisas após anos e anos de silêncio. Era agora a hora e a vez das sombras dominarem seu ser.
10h 30 e estava atrasado. Olhou o relógio traidor. A engrenagem imbecil havia falhado outra vez. Mais uma chance perdida e um dia de sol e vazio a sua espera. Grande coisa... Absoluto, mordeu uma banana e tentou fazer o velho jogo de dizer bom-dia para si mesmo. Não conteve uma risada e uma risada seguida dum espasminho porque definitivamente estava engraçado. Escorria pelo espelho algo que lhe saltara da boca.
Os eventos da madrugada vinham em flashes. Sonhos despertos que teve sentado na cama como um guru. Fora uma noite insone e muito bela com direito a mesma lua em diferentes momentos, o coral de dez gatos e o ronco da sra. Edgar. É, dez mil anos se passaram para a civilização gerar uma mulher Edgar. Dez mil anos... entre os quais gerou-se também o espelho, o café da manhã e o poder da vontade conforme Schopenhauer. Bem antes disso, o hominídeo comeu sua primeira banana e entendeu no outro o espelho torto de si mesmo. Nada mais.
Lá fora, passavam flechas automotivas e icebergs com pernas. Não procure entender essa visão. Isso não é uma alegoria. Nosso herói solitário prosseguia, galgando seu dia na forma de escalar a Rua Street até chegar a algum escritório. Havia uma chave em seu bolso. Sua missão: deveria engendrar uma cópia e eu nunca vi tamanha profusão de verbos mal empregados como neste texto. O chaveiro estava fechado.
Na casa do chaveiro, o despertador também não tocara e o pobre gordo monstro desabava em suor para fora da cama e se ajeitava no espelho na permissão do espaço que tinha. Sofria do mal de chagas e, ainda não sabia, mais outra doença pior. A fome do gordo não existia. Ele não estava comendo uma banana mas mastigava a pasta de dentes. Uma sensação quase incômoda de cerdas arranhando dentes que trituram cerdas e algo que já fora macerado pela máquina.
Na casa de Edgar, havia ela e mais 3 crianças. Quatro dos dez gatos da noite eram dela e estavam miando. A três crianças nâo miavam e não eram suas. Oito seres naquele lar. Não havia carinho para todos.
Nosso herói, diante da frustrada viagem ao chaveiro, resolveu prosseguir em busca de outro escritório. O chaveiro exercitou-se abotoando o jaleco azul e por um instante se perguntou quem era aquele espelho diante de si. A chave bordada no jaleco apenas sorria pois não tinha respostas. Edgar se perguntava porque não mudou de nome quando era mais moça.

sexta-feira, março 11, 2005

Pq odeio médicos

Mostre-me onde dói.
Estou com uma dor filhadaputa nas costas, dr.
Eu sei. Vire-se. Não se volte. Mostre-me onde dói.
No ciático, dr. No ciático.
Isso é a lombar. Mendes, já te falei pra não se meter no meu trabalho. Vire-se. Pare de resistir.
O que você quer dizer com isso?
Todas as vezes que vem aqui é assim. Sei muito bem que não toma os remédios. O que você quer com minhas receitas? Acha que sou algum palhaço?
Modere sua língua, dr.
Todas as vezes é isso. "Tenho dor filhadaputa nas costas." Resiste à consulta e resiste ao tratamento. Nunca faz os exames. Qual o sentido então de vir aqui? Vire-se!
Como posso não me virar????
Você não confia. Você não acredita em mim. O que você quer?
Dr., eu quero que me mate.

sábado, março 05, 2005

A Lei do Inexplicável Sentido das Coisas

Eu quero que este pingo de suor caia do meu rosto... Agora.
Maldito calor.
Não cai. Não cai. Não cai.
Fica aí grudado só pra me irritar.
Aqui se costuma dizer que não se divide quarto de motel com as moscas. Pra mim, o sentido desta frase não existe. Isso é claro. A sonoridade dela sim: "Não se divide quarto de motel com as moscas".
Percebo que quando o Sr. Senso Comum criou essa frase, criou para os ouvidos e não para a mente. Porque não se divide quarto de motel com as moscas? Porque elas não te deixam dormir? Não te deixam trepar? Não te deixam pensar? Chorar? Ler? Beber como um porco, um nada dormente?
Pouco me importa nesta frase folclórica deste maldito lugar quente por que as moscas são tão más companhias num quarto de motel. Pra mim, esses insetos sempre foram más companhias em qualquer lugar que eu fosse. Já briguei com um sujeito que nunca vi porque queria fazê-lo entender que eu não acredito na erudição moderna... no homem do estudo. Ele nem ao menos estava falando deste assunto.
Muitos ditos do povo existem apenas e nada mais pela sonora sensação que provocam. Motel = lugar para se passar uma noite ou mais apenas como dormitório, lugar de passagem ou de foda urgente. Quarto de motel = o sepulcro do sono, do pensamento de espera e da foda urgente. Moscas = insetos em estado de parceria com o homem e seus suores. A frase, a expressão, o dito é quase um hai-kai.

Acho a intelectualidade arrogante. Querem ver sentido em tudo e tudo é existencialismo. Porque estou neste lugar? Porque quero lembrar. Porque eu estou suando? Porque aqui é uma maldita caldeira. Porque eu não tiro esse suor do meu rosto? ou Porque este pingo ainda não caiu do meu rosto? Sinto-me furioso.
Nas palestras que fiz pelo país cheguei a tratar dessa questão: há um momento em que a vida inexplica tudo. Inexplica. A platéia anotou o novo verbo em uníssono riscar de canetas promocionais com o logo do evento. I Ciclo de Palestras do Instituto Limitrofista Breasileiro. Porque pessoas vão assistir a uma palestra limitrofista? Eu não sei. Afinal, o pingo não cai. Esta é a questão de tudo. O sentido talvez exista. Não convide moscas para passar sequer (sequer) uma noite contigo num quarto de motel. Mas quem em seu juízo perfeito faria isso?
O suor deslizou 3 milímetros. O calor aumentou em 1 grau. Meu cílio superior a extrema esquerda do olho esquerdo desprendeu-se do inferior provocando um alívio profundo de cerca de milisegundos.
O curso do meu pensamento é sinuoso. Minha busca tem sido explicar o não-sentido das coisas. Ganhando notas pífias em matérias pagas no jornal. E uma coluna fixa num tablóide do meu próprio instituto. Agora estou aqui. Patrocinado por mim mesmo para comprovar in loco, num lugar sem sentido de existir, a Lei do Inexplicável Sentido das Coisas em Situações-Limite.

A ciência toma para si que a realidade ainda é o melhor laboratório. Sou da escola científica que diz que a melhor cobaia é o próprio cientista. Já estou liso. Sem um puto. Amanhã não terei como pagar minha diária neste motel. Vejo violência neste ambiente. Ontem vi sangue no azulejo do banheiro coletivo. Anteontem, ao chegar, vi o que acontece com quem não cumpre seus deveres de inquilino temporário. Há um contrato. Haverá sentido neste contrato? Será que é a punição quem confere sentido às coisas? É punindo o crime que sabemos dele crime? A lei existe para dar sentido... mesmo ao inexplicável. A vida pode ter sentido ou não. Mas sempre haverá uma lei.

Estou aqui para lembrar.

quarta-feira, março 02, 2005

Tio Sâni, o cara

Que tema, que tema!
Era assim que, duma forma muito própria, meu tio Sani se relacionava com a música que gostava. A beleza de tudo para ele estava no tema. A base, a base - ele argumentava e tava aí, ele tinha razão. Destrua e renasca na força do seu tema.

Abuso de capacidade!
Outro comentário muito dele. Flor de axiomas, esse Sâni, o cara. E se destrancava da entranha mental um comentário dessa natureza nem imagine o gestual que ele fazia. Econômico, só se dignava a comentar o que era bom. Não abria a boca pra coisas que não valessem realmente a pena. Com muita razão. Não desperdiçava energia e nem se fadigava com sem gracice.

Mulher!
Bastava isso. Mulher. Nesse códio mínimo de comentário havia que se parar tudo que se fazia e prestar atenção no entorno que com certeza ia aparecer ela. Abuso de capacidade! Que tema, que tema! Eram frases que usávamos fora das vistas do doido. Tínhamos medo do Sâni. Tínhamos medo de estar usando o código na hora errada. Mas vocês já perceberam que:
1. Música maravilhosa? Então é: "Que tema, que tema!"
2. Fez um ótimo trabalho? "Abuso de capacidade!"
3. Ela tá passando? "Mulher!"

Note-se. Estamos tratando de forma escrita de algo que é informação sonora. Sâni era um gênio da entonação. Um comentário do tio era feito de palavras com timbres corretos. Por exemplo: "Mulher!". Puxe o "lieeeeeeerrrr" na duração correta. Na métrica. Na métrica.

domingo, fevereiro 27, 2005

Dois

Isso tudo é preguiça ou o q?
Ele pensou isso e fitava seu rosto de perto - em superclose. O rosto de um era câmera, o outro personagem. Isso era uma brincadeira íntima. Ela ria pra câmera. Ele se fingia de plástico. Na qualidade de câmera eu sou objeto e não devo demonstrar emoção - ele dizia. Você não é só uma câmera, é também quem a segura e filma, manézinho cara de toalha - ela refutava. Faz sentido - ele, liberando um muxoxo vencido.
Boa menina. Isso. Agora faz aquela pose. Que pose? - dizia a atriz ao diretor. Ora, você sabe. Levanta os braços assim... Ela se fazia de perdida. Daí o diretor disse: "bom, deixa eu largar a câmera, já vi que vou precisar te dirigir melhor nesta cena". Ficava muito evidente sua intenção abusiva. A atriz no entanto parecia estar disposta a tudo para agradar ao criador. Sorriso de lado. Ensaiando falso cinismo o diretor apalpou a carne da atriz no intensamente puro desejo de modelar a cena conforme sua necessidade. Ela se mostrou bem receptiva. Daí a pouco esqueceriam a câmera e os dois estariam imersos... na cena.

quinta-feira, fevereiro 24, 2005

Não conheço ninguém que tenha ficado rica vendendo produtos da Avon.
Aliás não conheço ninguém que tenho pago seu aluguel com a venda porta a porta de produtos da Avon.
Na verdade, eu duvido muito que a Avon esteja ciente que pessoas como eu e a sra. estamos andando por aí, batendo de porta em porta de apartamentos alheios carregando produtos da Avon numa bolsa da Avon. A Avon não perderia tempo em investigar isso pois: 1) o índice de pessoas que fazem isso pode até ser bem grande mas, com certeza, o número de vendas deve ser desprezível para a Avon; 2) A parte esse mico de vender de porta em porta um produto duma empresa da qual você não é funcionário, o nome Avon está sendo mencionado e isso é algum tipo de propaganda - acho. Pois bem, por muito tempo esta foi minha crença. Nós, os sacoleiros da Avon éramos clandestinos e, portanto, a empresa não sabia de nossa existência.
Corroborava esta minha teoria o fato de o escritório onde conseguiamos os produtos, os manuais, o curso de vendas, a papelada ser num prédio bem merda no centro da cidade. Um prédio bem merda que não tinha porteiro pq mal tinha portaria. Elevador tinha e a porta era pantográfica (pra mim isso é o selo de garantia de que estamos lidando com uma empresa bem vagabunda).
Aabel Comércios Representações de Importações Ltda.... Porque dois "as" no nome? Pra encabeçar a lista alfabética na certa. Mais uma pista são essas tiradas geniais que os empresários de merda dão quando batizam suas empresas. No terceiro andar do prédio de merda com porta pantográfica e nenhum porteiro, no fundo dum corredor de caixas da papelão com "Avon" impressas se situa uma passagem sem porta para a sala da Aabel Com Repr. Imp Ltda.
Lá comprei meu kit: manual de produtos Avon Cabelo, Avon Pele, Avon Pés, Avon Unhas, Avon Pescoço, Avon Tudo.
- Fica a vontade.
Eu sentava. Sempre tinha uma outra magricela esperando. Esperando nao sei o quê. Talvez tomando coragem pra sair dessa vida.

quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Como um Verne

No fundo do fundo da inexpugnável caverna eu encontrei o Homem-BiPolar.

domingo, janeiro 30, 2005

Tudo bem

E sendo assim sentia-se muito adolescente e muito velho.
"Não se faz uma surpresa pedindo autorização ao foco da surpresa."
Assim como, não existe meia-surpresa e intenção não é ato.
A história que poderia ser ficou trancada na cabeça e virou mais uma manhã de banho quente. Mais uma manhã sem a mão dela onde dói: nas costas, nos braços e no coração. E sem a boca pequena onde sai o chateado ar. Trocou isso por aquilo. Trocou a aventura por um dia quase igual ao de ontem. Ele não se entende. Mais uma vítima da meia-loucura... do meio-ato.
Nariz trancado e tempo chuvoso. Então, diante da bagunça que havia aprontado fez a única coisa que se faz quando se está de muxoxo: pensar. Pensando, pensou deitado. Deitando, dormiu.
Dormindo, assistiu um filme azul. Aquele olho claro em close dominava a cena - devia ser esverdeado, estava azul claro. Viu tudo e cada detalhe. A câmera se afastou de um jeito engraçado e ele não percebeu mas via agora o rosto do olho que era o dela. Não era desconcertante e dava muito prazer assistir aquela cena. Nada mais acontecia. Nem precisava. Era o rosto dela e o contorno dos ombros. Havia ainda uma conchinha fechada no meio da claridade. Uma concha estreita e que devia ser avermelhada. Imagine uma concha de perfil. Sem as reentrâncias que são de costume. Na verdade, muito lisa. Imagine que, sem impedimento e de forma lenta e gradual, suas extremidades deslizam. As partes côncavas se alargam na reação à ação de um sorriso. As extremidades desta concha buscam o céu. Os olhos devem ser o céu pois também reagem assumindo mais brilho.
O sorriso abre a concha e insinua as pedrinhas brancas que têm guardadas. Presta atenção. Cuida o colar de jóias que se oferece nesse momento azul. Entra na cena outro ator... O novo personagem se junta a ela e agora tudo se revela. A câmera está no mesmo lugar mas os olhos claros já estão em outro lugar. Ele chegou.
Um som de madrugada interrompe a projeção. Apenas uma pausa. Abre o olho e só vê escuridão. Prefere ver o filme.
Encostado, de costas com as costas do seu tio militar. É um lugar campestre. Esse momento não lhe é estranho. Já aconteceu. Já aconteceu? O sonho agora não é mais azul e não parece uma projeção. Estão todos preguiçosos no que parece uma pós-festa familiar. Fim-de-churrasco num fim-de-domingo. Seu pai aparece e lhe oferece um presente. Tome, leva essa bíblia - diz o pai, sorrindo como quem apronta. E lhe entrega um livro de bolso pra se admirar na palma da mão. É um presente - completa o tio. De casamento - prossegue, rindo. Diante da surpresa do garoto, ele diz, matreiro como sempre: "Eu já sei de tudo, meu filho." Ao folhear, lê um livro sem palavras: páginas em papel de embrulho se alternam com outras páginas claras e brilhosas . A bíblia dada é toda assim: um mini-compêndio de páginas ásperas e páginas macias, páginas pardas e páginas de prata. A cada cinco páginas de um, uma de outro. A capa da bíblia é uma trança de barbantes de juta e um laço vermelho amarra tudo e faz um nó natalino. Será natal nesse sonho?

Acorda.
Sim. Ainda é a sua casa... De hoje.
Levanta.
Sim. Ainda, a mesma bagunça de trabalho e da quase-viagem quase-surpresa de ontem. Está comprovado que o tempo é linear e que atos deixam vestígios.
Olha o computador. Espere. Houve um ato sem vestígio aparente. As passagens estão lá. Num lugar seguro. Guardadas como um fundo... O certo e garantido fundo...
Para voltar pra sua casa. De amanhã.

Tudo bem.



quarta-feira, janeiro 12, 2005

Um mantra praquê

- Essa menina come creme demais.
- Se empanturra de gordura.
Se lá fora as nuvens se chocavam lentamente, lá dentro não saiam do lugar. Fora já foram. Passaram e ninguém viu. Dentro, pararam e bocejaram. Então olha o senhor de volta à leitura sofrida do seu jornal com pensamentos densos e carregados. Algo entre a inevitabilidade do não-ser e a ânsia mórbida de tomar sua própria pressão. A senhora torcia as mãos e ouvia os estalares das juntas pensando será já hora do almoço? A criança comia creme doce mentecapto com o olhar fixo no objeto da sua frágil domesticidade infanto-juvenil. A tela que espirrava alegria pronta e quentinha... rumo ao sepulcro estarrecido de ver que o tempo naquela casa já passara e era tarde demais. O mesmo tempo que cerzia uma mortalha ornada de nadas por onde todos passeavam sobre... ahn, não, boiavam... boiavam sobre a mesma mesmice sem fim daquele velho carpete. Taco ou formipiso também valem. A escolher.
- Vai escovar esse dente menina.
Um dente menina. Gorducho e furada. Tortinho e tristonha. Entre amarelado e turva. Uma dente bondoso e solitária. Caído a espera da queda. Sem ser de leite.
A essa ordem vencida veio uma desobediência sem graça. À intensidade das horas, momentos e alegrias perdidas veio a profundidade de assumidos fracassos. Pra quê? Pra quê? Eles todos pareciam se perpetuar no entoar da giratória pergunta.
Da também giratória cadeira, o menino se permitiu lucidez. Um moleque assistindo todos os modelos descartáveis de comportamento desfilando à sua frente. Que vontade de quebrar a tela. Mas seu deus de bolso lhe disse para mirar sobre a ira e assim enxergar o além dali. Uma historinha de paz que fosse muito bonita pelo mistério e pelo abraço que oferece.
Na frente da sua história há um cortejo de janelas. Mostruário de vidas paradas que valem algo que elas mesmas não sabem, porque se soubessem não desperdiçavam tanto.
Foi quando um problema de coluna se tornou uma linguagem. Criada por seu corpo para dar recadinhos maus. "Escoliótico, lordoso, cifótico... " Lombroso foi o triste homem que avaliou pelo corpo a dignidade do ser. Não é à toa que seu nome lembra um problema postural.
Problema: a criança que bebe chope. A criança que fuma. A criança que virou coca (as duas). A criança que anuncia. Ainda assim uma criança. Apesar disso, criança. Para calar teu choro dão-te de presente um vício... uma manha. Na falta dele e na presença da sua choromanha lhe dão outro vício - mais atualizado.
Logo ali, à esq. da foto, um senhor lê o jornal. O jornal fornece palavras mais do que notícias. A novela fornece vida mais do que histórias. E as palavras vão morrendo naquela casa. Engolidas com a comida e substituídas por um mantra "praquê".
A reação não é reação. É somente prache.

Então o guri voltou para seu labor sedentário e para o além dali.