terça-feira, abril 26, 2005

A imersão é um código

Algo vem. Um vento que empalidece o campo.
É bom? É ruim? Não sei. Vem. As nuvens pouco resistem. Buscam formas, se monturando sem parar - eu paro - eu espero: o dia todo pra ver manhã em tardinha que traz o sussurro de algo que vem e pra ter a certeza que esta não vai ser a mesma noite de ontem.
Sei que meus pés estam lá mas não os sinto. Na mesma bota. No mesmo chão que os engole. Fincados como estacas, nem vale o esforço de usar as minhas pernas. Correr é ficar. Fico e corro na minha insistência de ser um espantalho do meu medo. Lá no alto, camadas e camadas de fantasmas cinzentos esmagam meus olhos. Se fossem bólidos atravessariam um milhão desses cinzas até emergirem no azul. Eu teria alívio de segundos pra respirar, admirar-me com a paz, sentir-me feliz de tão só até ter meus olhos tragados pela Terra novamente. Caindo com a chuva.
Daqui, camadas e camadas de vazios também se aglomeram. O frio vem, me atravessa e parte como se eu fosse nu. No entanto, sou roupa. Roupa estendida no varal que não seca nunca. Quero ficar. Não quero ir. Quero esperar. Que eu seque no frio. Que seja assim. Bom ou ruim, o vento passa. Ou nos leva, ou nos atravessa qual fossemos roupas nuas. De uma forma ou de outra, ele vai. Deixando a mim, a ela e aos fantasmas do céu em paz, pq não? Que o vento passe. Sem fuga.
Que empalideça o campo. Eu sei que depois do vento vem o sol. Que nos seque os olhos pra nos vermos melhor. Pra vermos quem seremos depois. Depois: depois e depois e depois.

quarta-feira, abril 20, 2005

Prece prece sólido sólido chão chão

Peço que me acorde de mais essa noite de solidão.
Peço que me acorde de mais essa noite de solidão.
Estou numa rua. Estou onde não estou.
Me sinto muito quente me sento sobre o chão frio
me calo me repito.
Tua pele me repele. Então não mais me aproximo.
Não me escuto então eu grito.
Não me escuta enquanto grito.
Me recupero não sei como mas só sei quando não respiro.

Peço que me acorde mas não te digo não consigo.
Peço que me mova pois já não me movo sozinho.
Me desloco no tempo para o tempo onde não me avalio.
Percorro minha extensão me descubro dentro de um nicho.
Me isolo em meio a água, em meio a água eu me ilho.
Fujo de mim mesmo e dou de cara dou de cara
dou de cara com um rio
a extensão é de um mar por isso a outra margem não avizinho

Pois
Sou ilha no meio dum mar que não passa de um rio
Peço que me abrace tá fazendo muito frio.
Peço que me acorde não quero ficar sólido não.
Peço que me acorde não quero ficar só no chão.
Peço que se aproxime e não me deixe no porão.

segunda-feira, abril 18, 2005

Marx segundo Freud

Acabaram os copos de plástico.
Alguém tem que descer pra comprar.
Bom, isso foi o que eu entendi na hora. Daí cheguei e fui cuidar a minha mesa. Prefiro ficar longe pro caso do problema vir pro meu lado. Ai. As canetas. Não tem uma caneta sequer na minha mesa. Isso acaba comigo é como se deixasse de ser minha. Mas tem o escondido. O escondido é o santuário onde meus reservados ficam a salvo da horda. Tem uma Lammy e duas Bics. Obviamente optei pela coisa mais barata. Só tinha vermelha e preta. Peguei as duas pra deixar a vermelha (a que uso menos) na Vala e a preta no segundo estagio do escondido. O segundo estágio do escondido é o segundo círculo do santuário onde meus pertences importantes porém mais dispensáveis podem ficar. Um lugar menos protegido que o santuário mas ainda assim de acesso mais trabalhoso que A Vala. A Vala? Purgatório dos objetos. O local mais à vista das águias onde ofereço em sacrifício meus bens de menor valor à essas filhas da puta. Elas vêm de razante sobre minha mesa para sequestrar qualquer coisa em emprestado.
A horda. Cavaleiros do hades. Seres desprezíveis dispostos a tudo para disseminar o caos pilhando em pleno dia a propriedade alheia. Porcos com asas. Se deliciam com as iguarias da Vala e as carregam pros seus ninhos sujos. Onde tudo se perde. Onde a propriedade deixa de ser.
O monturo de arquivos da pasta A está bem maior que o da pasta B. Mal sinal. Que vontade de clicar e arrastar tudo pro limbo. Mas não dá. Dentro da rede todos os passos são monitorados por Fred, o Musgo. Convém ter medo do seu ícone - a cobra preta de chifres vermelhos no canto da tela.
Não entendi bem e peço para repetir. A vaca da mesa 1 me intima para a vaquinha dos copos de plástico. Como deixaram acabar? - me pergunto. E a reserva? Ra, não existe reserva. Olho pra vaca e... não queria ter hesitado, não devia... Será que ela percebeu? Mas também, que importa? Quando lhe dou o dinheiro, ela corre para a horda sem dizer nem "tchau seu otário". Discute-se muito pra terminar com cerveja. Sei bem pra onde vai esse mutirão. O assunto me dá sede e me faz lembrar do meu segredo: eu tenho um santuário. Inatingível até para o Musgo. Nos períodos de escassez, eu sempre sobrevivo. Morrem os lagartos ficam os ratos. Morre a civilização, sobrevivem as baratas. Que fique claro, não sou rato nem barata mas sou sobrevivente. Num lugar onde prevalece a rapinagem, o almoxarifado é só um local para a felação após o almoço. Aqui eu sou reserva moral e é isso que me mantém lúcido em quatro meses sem ver a cor do salário.
Deslizando a gaveta escondida surge um paraíso particular. Entre o kit de primeiros socorros, a garrafinha d água, durex, cola, lápis, lammy e outras coisas... um copo de plástico. Apenas um. Rígido. Não um desses frágeis descartáveis de plástico branco mundano desprezível. É o meu.

Heróis

Se olhasse para trás teria visto sua vida.
Se olhasse para trás mas não olhou. Orgulhoso, preferiu seguir em frente se achando muito certo de seus atos. Covarde, atinou que nunca chorou antes como naquela noite. O lado oculto lhe disse coisas após anos e anos de silêncio. Era agora a hora e a vez das sombras dominarem seu ser.
10h 30 e estava atrasado. Olhou o relógio traidor. A engrenagem imbecil havia falhado outra vez. Mais uma chance perdida e um dia de sol e vazio a sua espera. Grande coisa... Absoluto, mordeu uma banana e tentou fazer o velho jogo de dizer bom-dia para si mesmo. Não conteve uma risada e uma risada seguida dum espasminho porque definitivamente estava engraçado. Escorria pelo espelho algo que lhe saltara da boca.
Os eventos da madrugada vinham em flashes. Sonhos despertos que teve sentado na cama como um guru. Fora uma noite insone e muito bela com direito a mesma lua em diferentes momentos, o coral de dez gatos e o ronco da sra. Edgar. É, dez mil anos se passaram para a civilização gerar uma mulher Edgar. Dez mil anos... entre os quais gerou-se também o espelho, o café da manhã e o poder da vontade conforme Schopenhauer. Bem antes disso, o hominídeo comeu sua primeira banana e entendeu no outro o espelho torto de si mesmo. Nada mais.
Lá fora, passavam flechas automotivas e icebergs com pernas. Não procure entender essa visão. Isso não é uma alegoria. Nosso herói solitário prosseguia, galgando seu dia na forma de escalar a Rua Street até chegar a algum escritório. Havia uma chave em seu bolso. Sua missão: deveria engendrar uma cópia e eu nunca vi tamanha profusão de verbos mal empregados como neste texto. O chaveiro estava fechado.
Na casa do chaveiro, o despertador também não tocara e o pobre gordo monstro desabava em suor para fora da cama e se ajeitava no espelho na permissão do espaço que tinha. Sofria do mal de chagas e, ainda não sabia, mais outra doença pior. A fome do gordo não existia. Ele não estava comendo uma banana mas mastigava a pasta de dentes. Uma sensação quase incômoda de cerdas arranhando dentes que trituram cerdas e algo que já fora macerado pela máquina.
Na casa de Edgar, havia ela e mais 3 crianças. Quatro dos dez gatos da noite eram dela e estavam miando. A três crianças nâo miavam e não eram suas. Oito seres naquele lar. Não havia carinho para todos.
Nosso herói, diante da frustrada viagem ao chaveiro, resolveu prosseguir em busca de outro escritório. O chaveiro exercitou-se abotoando o jaleco azul e por um instante se perguntou quem era aquele espelho diante de si. A chave bordada no jaleco apenas sorria pois não tinha respostas. Edgar se perguntava porque não mudou de nome quando era mais moça.