sábado, setembro 17, 2005

Dr. Medicina (dissertação em 11 atos)

Atores:
Mortimer Só
Dr. Antonio
Dona Terezinha
Homens de macacão
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I Ato

Pode sentar. O que o traz aqui, Sr...?
Só. Mortimer Só.
Certo. O que o traz aqui, Sr. Só?
O Sr. não lembra de mim?
Como?
O Sr. não lembra que estive aqui antes?
Ah, o Sr. já é meu paciente... Quando foi sua última vez? Vou pedir à minha secretária que traga sua ficha e...
Eu estive aqui ontem. O Sr. não lembra, Dr.?
Ontem? Olha, de fato, tive muitos pacientes ontem mas não lembro de ter atendido o Sr.
O Sr. não lembra, Dr.?
Bem, pode ser que eu tenha esquecido não é mesmo? Vou pedir à minha secretária que traga sua fi...
Desista.
Como?
Desista. O Sr. não lembra do ocorrido?
Não. Que ocorrido?
Pois bem, então eu vou aclarar sua memória... Dr.

(escurece o palco)

(reacende o palco. vê-se uma parede sendo empurrada para o centro do palco por homens de macacão, surge assim a divisão entre a sala do medico e a sala de visita. passasse um tempo sem falas onde o médico olha um canto de parede em sua sala enquanto na sala de visita, dona terezinha olha fixamente um canto de parede. os dois olham para a mesma direção: uma paisagem de praia entre os dois cenários. a paisagem fora posta por um dos homens de macacão que empurrava o cenário.)

Dona Terezinha. Venha aqui, por favor.
(olhando para a foto na parede)

Estou indo, Dr. Antonio.
(olhando para a foto na parede enquanto fala pelo interfone)

(dona terezinha se levanta e entra na sala. a outra sala se apaga.)

Sim Dr. Antonio?!
Dona Terezinha, o paciente que acabou de sair daqui...
O Sr. Só?
Sim... Ele me afirmou que esteve aqui ontem para que eu o atendesse e que eu o atendi. A Sra. lembra dele ter vindo aqui ontem, Dona Terezinha?
Não no meu turno, Sr.
Doutor... A Sra. não lembra se viu ou a Sra. não viu o Sr. Só aqui ontem neste escritório, Dona Terezinha?
Perdão, Dr. Não lembro de têr visto aquele Sr. neste escritório durante o meu turno, Dr.
Ok. Ok. Pode ir. Ahn... Dona Terezinha.
Sim?
Procure a ficha do Sr. Só, para mim.
Ahn Dr...
Hm?
A ficha. Está aí com o Sr., Dr Antonio.
Ahn?
O Sr. acabou de atendê-lo. A ficha está com o Sr., Dr. Antonio.
Oh sim. Está. É verdade. A ficha está comigo, Dona Terezinha. Obrigado. Pode ir...
Sim Sr.
Ah! Mais uma coisa...
Sim, Dr. Antonio.
Quem estava cumprindo o outro turno de ontem aqui neste escritório, Dona Terezinha?
O Sr. não lembra, Dr Antonio?
NÃO DONA TEREZINHA. Eu não lembro quem estava aqui no outro turno de ontem neste escritório. A sra poderia me fazer o favor de me lembrar, Dona Terezinha?
Ninguém... Ninguém além do Sr., Dr Antonio.
...
O Sr. não lembra de ter dito que atenderia os telefones enquanto eu ia me consultar com a Dra. Ana... Ontem... No outro escritório?
... Claro, claro... Obrigado... Dona Terezinha... Pode ir...

(médico sozinho na sala; olha para os retratos na parede; olha para o diploma)
Ontem.

(escurece o palco)

(sons de gemidos que viram gritos. gritos de prazer. o palco se reacende com luz mortiça até estabilizar numa luz vermelha. mortimer só fode com dona terezinha. dr antonio atende uma paciente sentado atras de sua mesa. enquanto sobre a mesma mesa a foda vai ficando boa. dr antonio se levanta para auscutar a paciente - que é um boneco - e fica falando coisas de médico até o climax do gozo dos dois lá em cima da mesa. dr antonio não pára de falar coisas de médico. depois do gozo, dr os dois corpos ficam um sobre o outro bem em cima da mesa. os dois vão se desencaixando lentamente com muitos gemidos. vão se levantando. vão se retirando da cena. volta a escuridão.)

Plano. Qual o seu plano? Qual-é-oseu-plano? BradescoSulamericaPetrobrasBanerjBanespaGoldenUnimedUnicred Qual é o seu plano? Qual é o seu plano?
Toma aqui. Esse serve? Esse aqui.
Isso não é plano, amigo. Isso é uma carteira de identidade.
Pois é Pois é Esse é meu plano esse é que é meu plano.
Não. Isso não é plano. Isso não vale nada meu amigo. Isso é uma identidade.
Vale sim. Pelamor vale sim. Olha. Sou eu sou eu eu sou esse aí.
Não. Não e não.
O que é que está acontecendo aqui? Que zona é essa?
Esse sr.
Só. Meu nome é Só.
Ele quer ser atendido. Mas ele não tem plano.
Ué então pague ora. 300 reais 300 reais amigo. Vai passando aí 300 reais a consulta.
Mas eu não tenho isso. Eu não tenho. Eu só tenho doença. Eu só tenho minha doença.
Então vai trocar por dinheiro, porra.
(o medico tira uma arma e aponta para Só. gritaria e confusão. de repente a cena congela. pessoas vestidas d macacão empurram um sofah para o meio do palco. retiram as paredes do lugar. os personagens ficam congelados. mortimer só sai do congelamento e anda ateh o meio do palco onde está o sofá. em cima do sofa várias caixas de remédio com tarja preta. ele olha e tira uma caixa, pega, examina, abre a caixa, tira a bula e lê em voz alta.)

leitura da bula ateh as contraindições.

Se eu tomar isso eu morro. Mas mas se eu não tomar isso... eu morro.

Eu, na cama, com a sociedade avançada

I

Acho que vou dormir.
Não não. Acho que vou levantar.
Tem trabalho, não tem? Ai, minha coluna.
Devo tentar.
Acho que vou tentar... Tentar o quê? Do que eu estava falando? O que eu tentei antes foi deletado. Antes... Não lembro se eu já estava deitado e esqueci ou se deitei agora e não dormi. Não lembro se dormi. Dormir? Tentei. Acho que sim.
Mas agora eu tenho certeza de que não devo levantar. Algo vai acontecer e eu não devo levantar. O Fato entrará deslizando com seus pézinhos aéreos e se, quando o Fato passar pelo quarto, eu me esconder sob as cobertas, ele não me verá e passará para outro apartamento. É isso. Já sei. Eis meu projeto do dia. Decidir quando devo tomar o remédio. Que forma perfeita de solucionar meus problemas. Não tenho sono mas desejo dormir, certo? Tenho que tentar mas não lembro o que... Se eu me concentrar não em tomar ou não aquele remédio mas em quando tomá-lo estarei executando a ação.
Está decidido.
Deitarei novamente.
Mas se deitado eu já estava, me deitarei por dentro. Estou feliz pois agora estou convicto de que executarei uma ação no tempo. Se não posso dormir então que eu me deite. Se eu desejo tentar algo mas, não me lembrando, não sei o que é, devo então me concentrar no quando em vez de no o que. Afinal, eu sei que eu devo tentar. Sei que não há outra escolha além da tentativa. Ou melhor, talvez até exista mas ainda não se sabe qual é. Bem, esta ânsia é certa: tentar.
Desnecessário prosseguir, pode parecer que estou querendo enganar-me. Não, não... Não estou deslocando a fonte do meu desprazer. Que isso fique bem claro. Estou só invertendo tudo. Passarei a ser eu o Fato, deslizando sobre a tentativa, e ela o Eu-eu mesmo, se escondendo sob as cobertas esperando que eu passe por ela que, mesmo sendo tentativa, deita mas não dorme por não ter porque dormir. Agora ficou tudo muito claro. E decidi tudo isso sem sair da cama! Fenomenal. Quando todos os projetos de tentativas ignorarem o 'o que' passando direto para 'o quando' estaremos na sociedade avançada. Tendo 'o quando', o 'o que' pára de importunar. O Quando é o Fato. Sim, quando O Quando chegar eu me preocupo com o O Que. Está feito...
Ei. Espere. Me ocorreu algo.
Será que já não estamos na sociedade avançada?


II

Anita sonhou que estava nua.
No seu sonho nós ríamos muito dela. Duma forma que faria qualquer outra Anita chorar de vergonha. Mas outra coisa ocorreu dentro dela. Enquanto ríamos de nos acabar ela decidia: acordar, deitar ou morrer? Então, se deu conta de que todas as três alternativas eram a mesma. Tomou a faca das mãos da irmã (que ria) mas sabia que não conseguiria se matar. Nem ao menos cortar a própria pele. Fez assim: deitou a faca no chão com o gume voltado para o céu. Deixou-se empurrar pela multidão histérica e assim foi, desenhando um arco até o chão, até sentir uma linha fria de dor penetrar-lhe o peito. Deu certo.
1) A turba parou de rir. Alguém gritou por ajuda.
2) Anita acordou. Anita deitou. Anita morreu.

Chovia em seu sonho.


III

O telefone tocou e tocou e tocou e eu desisti.
Fiquei olhando o piano e pensando e pensando e pensando.
Tornei a ligar. Daí só deu ocupado. Liguei; ocupado. Liguei; ocupado. Liguei; ocupado. Liguei; ocupado.
Mas, meu Deus do Céu, o que está acontecendo? Me inquiri - bem alto para que eu ouvisse bem.
A decisão de aguardar veio do relógio. Afinal, ele estava ali e precisava mostrar serviço. Então tá. Foi aí que notei algo singular: eu estava nervoso. Muito bem, era preciso manter a calma, restabelecer o equilíbrio e projetar os fatos. Respirei fundo mas não percebi que não foi suficiente. Respirei mais fundo. É espantoso a capacidade de guardar ar do pulmão. Utilizamos pouco e fazemos mal-uso de nosso aparelho respiratório. O uso do aparelho respiratório: eis meu tema do dia. Percebi algo. O telefone tocou. Possivelmente havia tocado três vezes antes daquela mas eu estava absorto demais com a respiração para perceber. Atendi e ouvi um sinal, silêncio, sinal... silêncio... sinal... tentei mas não consegui respirar de acordo com o pulsar daquela desistência. Recolocado no gancho, o telefone me parece desarmonioso.
Torno a ligar.