sábado, setembro 17, 2005

Eu, na cama, com a sociedade avançada

I

Acho que vou dormir.
Não não. Acho que vou levantar.
Tem trabalho, não tem? Ai, minha coluna.
Devo tentar.
Acho que vou tentar... Tentar o quê? Do que eu estava falando? O que eu tentei antes foi deletado. Antes... Não lembro se eu já estava deitado e esqueci ou se deitei agora e não dormi. Não lembro se dormi. Dormir? Tentei. Acho que sim.
Mas agora eu tenho certeza de que não devo levantar. Algo vai acontecer e eu não devo levantar. O Fato entrará deslizando com seus pézinhos aéreos e se, quando o Fato passar pelo quarto, eu me esconder sob as cobertas, ele não me verá e passará para outro apartamento. É isso. Já sei. Eis meu projeto do dia. Decidir quando devo tomar o remédio. Que forma perfeita de solucionar meus problemas. Não tenho sono mas desejo dormir, certo? Tenho que tentar mas não lembro o que... Se eu me concentrar não em tomar ou não aquele remédio mas em quando tomá-lo estarei executando a ação.
Está decidido.
Deitarei novamente.
Mas se deitado eu já estava, me deitarei por dentro. Estou feliz pois agora estou convicto de que executarei uma ação no tempo. Se não posso dormir então que eu me deite. Se eu desejo tentar algo mas, não me lembrando, não sei o que é, devo então me concentrar no quando em vez de no o que. Afinal, eu sei que eu devo tentar. Sei que não há outra escolha além da tentativa. Ou melhor, talvez até exista mas ainda não se sabe qual é. Bem, esta ânsia é certa: tentar.
Desnecessário prosseguir, pode parecer que estou querendo enganar-me. Não, não... Não estou deslocando a fonte do meu desprazer. Que isso fique bem claro. Estou só invertendo tudo. Passarei a ser eu o Fato, deslizando sobre a tentativa, e ela o Eu-eu mesmo, se escondendo sob as cobertas esperando que eu passe por ela que, mesmo sendo tentativa, deita mas não dorme por não ter porque dormir. Agora ficou tudo muito claro. E decidi tudo isso sem sair da cama! Fenomenal. Quando todos os projetos de tentativas ignorarem o 'o que' passando direto para 'o quando' estaremos na sociedade avançada. Tendo 'o quando', o 'o que' pára de importunar. O Quando é o Fato. Sim, quando O Quando chegar eu me preocupo com o O Que. Está feito...
Ei. Espere. Me ocorreu algo.
Será que já não estamos na sociedade avançada?


II

Anita sonhou que estava nua.
No seu sonho nós ríamos muito dela. Duma forma que faria qualquer outra Anita chorar de vergonha. Mas outra coisa ocorreu dentro dela. Enquanto ríamos de nos acabar ela decidia: acordar, deitar ou morrer? Então, se deu conta de que todas as três alternativas eram a mesma. Tomou a faca das mãos da irmã (que ria) mas sabia que não conseguiria se matar. Nem ao menos cortar a própria pele. Fez assim: deitou a faca no chão com o gume voltado para o céu. Deixou-se empurrar pela multidão histérica e assim foi, desenhando um arco até o chão, até sentir uma linha fria de dor penetrar-lhe o peito. Deu certo.
1) A turba parou de rir. Alguém gritou por ajuda.
2) Anita acordou. Anita deitou. Anita morreu.

Chovia em seu sonho.


III

O telefone tocou e tocou e tocou e eu desisti.
Fiquei olhando o piano e pensando e pensando e pensando.
Tornei a ligar. Daí só deu ocupado. Liguei; ocupado. Liguei; ocupado. Liguei; ocupado. Liguei; ocupado.
Mas, meu Deus do Céu, o que está acontecendo? Me inquiri - bem alto para que eu ouvisse bem.
A decisão de aguardar veio do relógio. Afinal, ele estava ali e precisava mostrar serviço. Então tá. Foi aí que notei algo singular: eu estava nervoso. Muito bem, era preciso manter a calma, restabelecer o equilíbrio e projetar os fatos. Respirei fundo mas não percebi que não foi suficiente. Respirei mais fundo. É espantoso a capacidade de guardar ar do pulmão. Utilizamos pouco e fazemos mal-uso de nosso aparelho respiratório. O uso do aparelho respiratório: eis meu tema do dia. Percebi algo. O telefone tocou. Possivelmente havia tocado três vezes antes daquela mas eu estava absorto demais com a respiração para perceber. Atendi e ouvi um sinal, silêncio, sinal... silêncio... sinal... tentei mas não consegui respirar de acordo com o pulsar daquela desistência. Recolocado no gancho, o telefone me parece desarmonioso.
Torno a ligar.

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