quarta-feira, janeiro 12, 2005

Um mantra praquê

- Essa menina come creme demais.
- Se empanturra de gordura.
Se lá fora as nuvens se chocavam lentamente, lá dentro não saiam do lugar. Fora já foram. Passaram e ninguém viu. Dentro, pararam e bocejaram. Então olha o senhor de volta à leitura sofrida do seu jornal com pensamentos densos e carregados. Algo entre a inevitabilidade do não-ser e a ânsia mórbida de tomar sua própria pressão. A senhora torcia as mãos e ouvia os estalares das juntas pensando será já hora do almoço? A criança comia creme doce mentecapto com o olhar fixo no objeto da sua frágil domesticidade infanto-juvenil. A tela que espirrava alegria pronta e quentinha... rumo ao sepulcro estarrecido de ver que o tempo naquela casa já passara e era tarde demais. O mesmo tempo que cerzia uma mortalha ornada de nadas por onde todos passeavam sobre... ahn, não, boiavam... boiavam sobre a mesma mesmice sem fim daquele velho carpete. Taco ou formipiso também valem. A escolher.
- Vai escovar esse dente menina.
Um dente menina. Gorducho e furada. Tortinho e tristonha. Entre amarelado e turva. Uma dente bondoso e solitária. Caído a espera da queda. Sem ser de leite.
A essa ordem vencida veio uma desobediência sem graça. À intensidade das horas, momentos e alegrias perdidas veio a profundidade de assumidos fracassos. Pra quê? Pra quê? Eles todos pareciam se perpetuar no entoar da giratória pergunta.
Da também giratória cadeira, o menino se permitiu lucidez. Um moleque assistindo todos os modelos descartáveis de comportamento desfilando à sua frente. Que vontade de quebrar a tela. Mas seu deus de bolso lhe disse para mirar sobre a ira e assim enxergar o além dali. Uma historinha de paz que fosse muito bonita pelo mistério e pelo abraço que oferece.
Na frente da sua história há um cortejo de janelas. Mostruário de vidas paradas que valem algo que elas mesmas não sabem, porque se soubessem não desperdiçavam tanto.
Foi quando um problema de coluna se tornou uma linguagem. Criada por seu corpo para dar recadinhos maus. "Escoliótico, lordoso, cifótico... " Lombroso foi o triste homem que avaliou pelo corpo a dignidade do ser. Não é à toa que seu nome lembra um problema postural.
Problema: a criança que bebe chope. A criança que fuma. A criança que virou coca (as duas). A criança que anuncia. Ainda assim uma criança. Apesar disso, criança. Para calar teu choro dão-te de presente um vício... uma manha. Na falta dele e na presença da sua choromanha lhe dão outro vício - mais atualizado.
Logo ali, à esq. da foto, um senhor lê o jornal. O jornal fornece palavras mais do que notícias. A novela fornece vida mais do que histórias. E as palavras vão morrendo naquela casa. Engolidas com a comida e substituídas por um mantra "praquê".
A reação não é reação. É somente prache.

Então o guri voltou para seu labor sedentário e para o além dali.






Um comentário:

Anônimo disse...

as tuas palavras sempre dizem tanto mais do que eu poderia imaginar...
mesmo assim fico imaginando o que se passa e como acontece. o momento que te faz criar isso tudo.
tão particular. teu. cotidiano. e ao mesmo tempo tão universal. tão maior do que se poderia ver. assim, no próprio fato.
é... te admiro. muito.