quinta-feira, fevereiro 19, 2004

Perfeitos. Dna Gersa e Seu Rocha.

Perfeitos

Era muito bom isso: acordar todos os dias e ver que ele estava lá.
Ele tinha essa sensação também.
Poder olhar e ver a menina acordar aos poucos. Ver o corpo aparecendo junto com a luz da manhã. Depois passar o dia com o conforto daquela imagem na lembrança.

Sem dúvida era um amor perfeito.
Por isso decidiram se separar.

Algo tão perfeito não podia acabar bem.


Dna. Gersa e Seu Rocha

- Gersa, fica tranqüila. – disse o português ao volante.
- Ai, Rocha. Ai Cristo. – respondia Dona Gersa apertando Guia Rex e rosário com as duas mãos.
As ruas agora eram vielas. Cada vez mais estreitas, cada vez mais opressivas. Ninguém nas ruas pra dar informação. Nada... e pareciam mais perdidos ainda. O casamento era na Ilha do Governador e, eles não sabiam, mas estavam na Favela do Abricó, a 10 km do altar.
- Rocha, olha.
Parecia uma patamo mas não era. O carro era grande pacas e tinham cinco caras de fuzil em volta. Um disse: “Pára, porra.”
- Não pára, Rocha. – disse Dna Gersa.
- Está louca? Tem que parar ou eles nos matam!
E o corsa parou. Os fuzis olharam pro carro e os encararam de frente. O do grito meteu uma luz na cara do casal. Primeiro, a estampa pálida de Seu Rocha, depois a de Dona Gersa.
Terror... E mais um bando de emoções loucas espremidas no liquidificador cerebral vascaíno resultaram num insólito:
- Boa noite.
Silêncio entre os bandidos. Que porra era essa? Aquele casal de coroas acossados dentro de um corsa.
- Qual é meu tio??? Desembucha. – gritou o de gritar que também era o da luz. Os outros do bando nada falavam.
Dona Gersa se espremia e seus olhos pareciam que iam estourar. Na cabeça, um horrível sentimento de antecipação dos acontecimentos... Que miséria cair nessa emboscada casual.
Com voz trêmula e cabeça confusa, guiado por instintos ancestrais, seu Rocha falou:
- Pó.
- Quê? – disse o do grito com voz menos gritada.
- Vcs têm pó?
O do grito se calou. Os outros vultos começaram a conversar baixinho. Discutiam algo.
- Ae tio... C quer pó? É isso?
- É. Pó. – disse o lusitano.
- Ah porra. Pensa que me engana? Quer pó porra nenhuma!!!! Fala que q tu quer ou eu te balo.
- Ti juro meu filho. Eu vim aqui por que eu quero uma branquinha.
- ... O tio quer cheirar?
Seu Rocha confirmou com tanta veemência que assustava. Parecia um viciado. Dna. Gersa só fazia sacudir os olhos freneticamente para um lado e pro outro como se buscasse um canto sem vultos.
- E a tia? A tia também quer pó?
- Sim sim viemos aqui pra comprar pó. – atravessou Rocha.
Entre eles, o bandido conversou: “e ae? que que a gente faz?” “mata essas porras” disse um. O celular dum tocou. Era lá de cima. O do grito explicou a situação. Dna Gersa e Seu Rocha assistiam sem querer assistir. Por um segundo, Dona Gersa pensou em sua filha no altar. Será que ela lembrou de levar o broche da avó? De tão absurdo, sentiu vergonha de seu pensamento e voltou a pensar no calvário de Jesus.
- Sai do carro - disse o do grito que também era o do celular.
Os fatos se sucederam da seguinte forma: 1) vendaram os olhos dos portugueses, 2) meteram os dois na traseira do carro, 3) Subiram toda vida. O caminho era uma confusão de pequenas luzes cintilantes que vinham de feixes agudos no breu. 4) Subiram mais ainda. Se pudessem, veriam um caminho muito muito estreito. A sensação era de que o carro seria esmagado a qualquer momento pelas construções em volta. 6) A escolta parou. 7) Chegaram.
- Sai do carro – disse outra voz e prontamente puxaram o casal pra fora com uma delicadeza policial.
Tiraram-lhes as vendas e foram levados no escuro por uma escadinha que se derramava entre paredes tortas de concreto. Chegaram no alto de uma laje de onde se via uma paisagem de luzes sem fim e escuridão. Recebeu-os um magrão de chinelo, bermuda, jaqueta, máscara e... claro, fuzil.
- O tio quer pó, né? – disse o mascarado.
- Sim – respondeu o convicto Rocha.
- Qual é teu time, ô portuga?
Rocha ficou desnorteado. Pensou: “miséria, é agora que morro” Dona Gersa era a estátua de sua futura lápide. Nada falava apenas segurava seus lábios em pura tensão e pensava alternadamente no calvário de Jesus e no broche da noiva, ignorando o funk que rolava ao fundo.
- Flamengo – mentiu o portuga.
- Porra Manel, tu é um portuga muito diferente mermo. – riu o mascarado. - Tu quer quanto de pó? Pra vir aqui é pq ta na fissura. – e olhou para Dna Gersa - Sua patroa também é viciada, né???
Tantas perguntas... Seu Rocha agora só queria botar as mãos naquele pó e sobreviver.
- Quanto é um sâquinho? – arriscou o portuga lembrando de algum filme que viu na tv.
- “Um sâquinho”? Hahaha q figura – virou o mascarado falando com os outros que estavam em volta e que retribuíam as risadas. – “Um sâquinho está 100 real ô gajo.”mas pra tu e sua patroa eu faço por 1 barão dois saquinho.
O português teve um choque.
- Mas... tão caro?
- Como? Porra, vc vem a essa hora, sem avisar e atrapalha todo nosso esquema. Além do que vc só pode estar muito na fissura mesmo... aí fica mais caro.
- 500? – arriscou o portuga.
- Hanh?
- 500 por dois sâquinhos?
Por fim, o traficante aceitou. Ele mesmo parecia farto (o que podia significar perigo). O traficante exigiu pagamento antecipado. Tiraram a carteira do bolso de Seu Rocha e entregaram pro bandido que vasculhou e tirou a grana, inusitadamente, ignorando cartões e todo o resto. Quinhentos era exatamente o que havia em dinheiro ali, por conta de pagar o florista, os músicos e o fotógrafo da igreja. Que sorte..
- Pô, veio preparado hein? Tu deve ter grana. Gosto de cliente assim.
O traficante sumiu com a grana pra dentro do barraco e depois dum tempo voltou com dois saquinhos de plástico. Dentro deles estava o tal pó branco. Capitalistamente, trouxe também uma libra e pesou os dois saquinhos para provar que tinham o mesmo peso e que ninguém sairia no prejuízo. Fez alguns elogios também à qualidade do material que vendia. Pelo visto gostava muito do seu ofício. O casal agora parecia mais calmo. Enfim, o artifício dera certo. Seu Rocha segurando o saquinho era um tanto inverossímil mas... tudo bem. Estavam vivos. Poderiam ir embora com a graça de De...
- Só mais uma coisa, disse o mascarado e espalhou uma colher de pó numa carreira sobre um espelho quebrado.
- Cheira – completou, lhe entregando o canudo de papel.

O casamento estava atrasado. Maria, a noiva, estava em prantos. Os convidados estavam ansiosos. A igreja estava cheia.
Ailton, o noivo, que até então buscava notícias dos sogros, entrou correndo com o celular na mão.
- Vamos. A polícia me ligou. Eles estão presos em Olaria. – sussurrou para Maria.
- Quê? – disse a noiva.

Na cela, a cena era deplorável. Os dois portugas chapados não falavam nada e fediam. Foram encontrados num corsa azul que beijara um poste. No porta-luvas a polícia encontrou dois saquinhos com 200gr de coca cada. Pelo visto, tinham cheirado uma parte.
Quem diria. Após todos esses anos.

Como a gente se surpreende com as pessoas.

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